Com muito orgulho, chegamos à centésima edição do Grand Record Brazil. Uma trajetória brilhante e bastante expressiva. Isto só foi possível graças ao prestígio e à acolhida de nossos amigos cultos, ocultos e associados, a quem eu e o Augusto agradecemos de todo o coração. E nesta edição de número 100, reverenciamos a memória de uma das melhores cantoras e compositoras que a música popular brasileira já teve: Maysa.
Batizada como Maysa Figueira Monjardim, nossa focalizada veio ao mundo no dia 6 de junho de 1936, segundo algumas fontes no Rio de Janeiro, no bairro de Botafogo e, segundo outras, em São Paulo, oriunda de família rica e tradicional do Espírito Santo, filha de Inah e Alcebíades Monjardim, este último Fiscal de Rendas. Esta indefinição quanto ao local de nascimento da futura estrela talvez se deva ao fato de seus pais terem fugido de seu estado natal para o Rio de Janeiro, após se casarem, pois a família de sua mãe se opunha ao matrimônio, dada a boemia de Alcebíades. Residiram também em Bauru, interior paulista, voltando depois para a capital bandeirante, onde, mesmo fixando-se na mesma, trocaram de endereço várias vezes. Maysa estudou nos tradicionais colégios paulistanos Assunção, Sacre-Couer de Marie e no Ginásio Ofélia Fonseca (onde foi reprovada por suas notas e comportamento). Sempre foi rebelde e chegava a comparecer às aulas sem uniforme e com trajes ousados, sendo por isso proibida de frequentar os bancos escolares. Bilhetes eram enviados aos pais de Maysa e, como estes viviam na boemia, era difícil encontrá-los, e ela chegava a ficar três dias sem ir à escola, aguardando a assinatura deles. Tentou se matricular, depois, no Mackenzie, mas foi recusada em virtude de seu currículo, e por isso Maysa parou os estudos na segunda série ginasial. As férias ela passava em Vitória, onde ia rever seus tios e primos. Seu envolvimento com a música começou bem cedo: aos 12 anos, compôs sua primeira música, o samba-canção “Adeus” (primeira de uma série de 26), e desde a adolescência já gostava de cantar em festas familiares, além de tocar piano. Aos 17 anos, em 1955, Maysa casou-se com o empresário André Matarazzo, 17 anos mais velho que ela, e amigo de seus pais, da união resultando seu único filho, Jayme Monjardim Matarazzo, criado pela avó e posteriormente num colégio interno na Espanha, que iria se converter em talentoso diretor de cinema e televisão, realizando novelas e minisséries na extinta TV Manchete e depois na Globo (onde dirigiu inclusive a famosa minissérie sobre a vida de sua mãe, “Maysa – Quando fala o coração”, de 2009, com excelente desempenho de Larissa Maciel no papel-título). Ela não teve mais filhos por complicações no parto. Ainda grávida, Maysa conheceu o produtor Roberto Corte Real, que ficou encantado com sua voz. Combinaram então que, assim que Jayme nascesse, ela gravaria seu primeiro disco. Corte Real tentou, sem êxito, a contratação de Maysa pela Columbia, hoje Sony Music, e o jeito foi lançá-la em disco por uma nova gravadora: a RGE (Rádio Gravações Especializadas), de propriedade de José Brasil Ítalo Scatena, até então apenas um estúdio de jingles publicitários. E é pela RGE que a cantora-compositora lança, em novembro de 1956, seu primeiro LP, o histórico dez polegadas “Convite para ouvir Maysa”, com oito músicas de sua autoria, e cuja renda foi revertida para o Hospital do Câncer de São Paulo. Depois, claro, viria muito mais, tendo também gravado em outros selos, inclusive um álbum na mesma Columbia que a recusara, em 1961. Foi inclusive contratada das Emissoras Unidas (Rádio e TV Record). André, porém, se opunha à carreira musical de Maysa, e ao temperamento boêmio que ela herdou de seu pai, daí resultando sua ruidosa separação (em 1958, aos 22 anos, ela chegou a tentar suicídio cortando os pulsos, uma das inúmeras tentativas de liquidar a própria vida, aliás). Namorou depois o jornalista e compositor Ronaldo Bôscoli (tendo-se mudado, em 1960, para o Rio de Janeiro, a convite dele), o empresário Miguel Azanza (seu segundo marido), o maestro Júlio Medaglia e o ator Carlos Alberto, entre outros. Fez inúmeras temporadas em casas noturnas de São Paulo (como o Juão Sebastião Bar, o restaurante Urso Branco e as boates Cave, Oásis e Igrejinha) e Rio de Janeiro (como Au Bon Gourmet e Canecão). O alcoolismo e o uso de moderadores de apetite deixavam seu temperamento instável, o que causou notórios escândalos em hotéis e aviões de diversos países em que se apresentou. Manteve contato com inúmeros nomes da bossa nova, com os quais pôde expandir experiências musicais. Excursionou pela América Latina, passando várias vezes por Buenos Aires (Argentina), Montevidéu (Uruguai) e Lima (Peru), e cumpriu temporadas no Olympia de Paris (França), Lisboa (Portugal), onde ficou bastante tempo em cartaz no Cassino Estoril, Tóquio (Japão) e Luanda (Angola), além de ter residido na Espanha. No exterior, Maysa era conhecida como “a condessa descalça”, por sempre tirar os sapatos quando cantava. Participou também de algumas edições do FIC (Festival Internacional da Canção), que aconteceu no Maracanãzinho do Rio de Janeiro entre 1966 e 1972, e ninguém ousava lhe dar uma só vaia, o que a tornou uma das cantoras mais queridas do certame. Sua discografia abrange 17 LPs no Brasil (e um nos EUA, nunca editado entre nós), sem contar as coletâneas, 21 discos 78 rpm com 41 músicas, e alguns compactos. Maysa faleceu em 22 de janeiro de 1977, em trágico acidente automobilístico na Ponte Rio-Niterói, quando dirigia sua Brasília azul em alta velocidade (estava a caminho de sua casa em Maricá, litoral fluminense). Supõe-se que o efeito de anfetaminas somado à ingestão de álcool tenha causado o desastre, perdendo, assim, a música popular brasileira, uma de suas personalidades mais singulares. Para esta edição em que o GRB reverencia a memória de Maysa, foram selecionadas dez gravações preciosas e importantes histórica e artisticamente. As oito primeiras saíram em LP e também em 78 rpm (não esquecendo que era uma época de transição de formatos), todas sambas-canções e editadas por sua primeira gravadora, a RGE. Abrindo esta seleção, o clássico samba-canção “Meu mundo caiu”, uma de suas composições mais conhecidas, lançado em março de 1958 com o número 10083-A, matriz RGO-484, que ela também interpretou no filme “O batedor de carteiras”, da Nova América, distribuído pela Pelmex e estrelado por Zé Trindade (pouco antes de sua morte, em 1976, foi revivido na novela global “Estúpido Cupido”, de Mário Prata). O lado B, matriz RGO-486, é a faixa 8, “Buquê de Isabel”, também samba-canção e praticamente o primeiro grande sucesso do compositor Sérgio Ricardo (mais tarde famoso como “o homem do violão quebrado” daquele festival da Record, o de 1967). Ambas as músicas saíram, apenas alguns dias depois,também no LP “Convite para ouvir Maysa número 2” (o terceiro álbum de carreira, apesar do título, e o primeiro da intérprete em doze polegadas). A faixa 2 é outro clássico indiscutível de e com Maysa, o famoso “Ouça”, lançado em maio de 1957 sob número 10047-A, matriz RGO-220, inesquecível hit por ela também interpretado no filme ‘O camelô da Rua Larga”, da Cinedistri, também estrelado por Zé Trindade, sendo o lado B a faixa 6, “Segredo”, ambas constantes do também do segundo LP da vcantora-compositora, ainda em 10 polegadas e intitulado apenas ‘Maysa”. Na faixa 3, aparece “Suas mãos”, clássico de Pernambuco (Ayres da Costa Pessoa) e Antônio Maria, editado em setembro de 1958 com o número 10117-A,matriz RGO-767. O lado B está na faixa 5, “Mundo vazio”, de Amaury Medeiros e Antônio Bruno, matriz RGO-774, ambas também incluídas no terceiro volume de “Convite para ouvir Maysa”, sendo “Mundo vazio” a faixa de abertura do vinil. A faixa 4, originalmente abrindo o segundo LP de Maysa, de 1957, é o clássico “Se todos fossem iguais a você”, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, lançado na peça teatral “Orfeu da Conceição” e originalmente gravado por Roberto Paiva. O registro de Maysa foi relançado na cera pela RGE em dezembro de 57 com o número 10074-A, matriz RGO-295. Para o lado B, foi escalado “Tarde triste”, da própria Maysa, matriz RGO-123, que originalmente foi editada em vinil no primeiro “Convite para ouvir Maysa”, de 10 polegadas, em novembro de1956. Completando esta seleção, duas raríssimas faixas extraídas de um compacto duplo gravado por Maysa na marca francesa Barclay, número 70526, durante uma temporada em Paris, em 1963: o clássico bossanovista “Chega de saudade” de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, e “Cent-mille chansons”, de Eddy Mamay e Michel Magné, do filme “O repouso do guerreiro”, de Roger Vadim. Enfim, uma seleção que apresenta alguns dos melhores momentos de Maysa, abrilhantando esta centésima edição do nosso GRB (e pretendemos, claro, ir muito além). Ouçam e recordem conosco estes agradáveis momentos!
*Texto de Samuel Machado Filho