Bom dia, amigos cultos e ocultos! Eis aqui um disco que eu descobri recentemente. Na verdade eu o adquiri em um lote de disco que comprei em um sebo no Recife. Há tempos esse disco está esperando uma oportunidade de ser apresentado aqui. Hoje eu resolvi postá-lo e porque não dizer, conhecê-lo melhor. Confesso que me surpreendi. Aliás, quando se trata de artistas nordestinos eu geralmente me surpreendo, pois a turma lá pra cima tem uma musicalidade ímpar.
Temos aqui o ‘Jacaré’, apelido de Antonio da Silva Torres, um genial instrumentista e compositor pernambucano. Músico nato, que veio a ser descoberto, tardiamente, pelo violonista Maurício Carrilho na década de 80. Gravou apenas este disco através de um projeto cultural patrocinado pela Prefeitura da Cidade do Recife e Funarte, o Projeto Nelson Ferreira, que buscava registrar e promover a boa música feita na região e seus artistas. O disco de Jacaré foi o segundo volume de uma série do qual eu só conheço este lp. Com apoio e produção artística de Maurício Carrilho, o disco foi lançado em 1985. Como se trata de uma produção cultural, certamente o número de cópias (discos) foi pequena, insuficiente para apresentar o artista aos quatro cantos do país. Mesmo assim já valeu o esforço, o registro para a posteridade. Mesmo de maneira tímida, este trabalho permaneceu. A Funarte, pelo que sei, chegou até a relançá-lo em formato cd. Este é mais um daqueles álbuns que a gente precisa mesmo conhecer. Na verdade, não só o disco, mas também o artista. Para melhor apresentá-los, vou tomar aqui emprestado o texto do jornalista Marcos Toledo, publicado no Jornal do Commercio do Recife, há 12 anos atrás:
Antônio da Silva Torres é o nome que está nos seus documentos. Mas nem pelo seu famoso apelido, Jacaré, talvez você o reconheça. Quem curte o ritmo do choro, contudo, encontrará entre a pouco variada discografia disponível em CD um álbum desse cavaquinista de 72 anos, natural do bairro do Cordeiro, Recife. O talento de Jacaré, reconhecido por instrumentistas de renome nacional, não corresponde ao modo como ele vive hoje, relevado e desmotivado, levando a vida a animar rodas de chorões pelos bares da vida. Ainda assim, o músico tem um projeto de lançar mais um disco de inéditas, que já conta com o apoio do violonista e produtor Maurício Carrilho.
Ainda criança, ele tomou gosto pelo cavaquinho. O pai, Josias Olímpio Torres, era barbeiro e também violonista. “Ele levava muitos amigos para tocar lá em casa”, lembra Jacaré. Antes de se tornar um profissional da música, o cavaquinista trabalhou como auxiliar do alfaiate Arlindo Melo, que era também cantor de boleros e lhe deu o apelido pelo qual ficou conhecido até hoje. Seguiu, paralelamente, na alfaiataria e tocando o instrumento.
A vida do músico começou a ficar meio incerta com a morte dos pais. Sentindo-se sozinho, entrou para um circo e foi parar em Campina Grande, na Paraíba. “Depois, quiseram ir para o Peru mas eu não quis”, recorda.
De volta a Pernambuco, Jacaré voltou a ser alfaiate, já de maneira autônoma. Em sua mente, havia um outro objetivo: tocar no rádio, talvez, o que havia de melhor em termos de trabalho para um músico, naquela época. “Aqueles sonhos bestas que a gente tem”, define o artista, com um pouco de ressentimento.
O sonho, o cavaquinista começou a realizar quando, mais uma vez, foi para o interior. No município de Limoeiro, onde viveu por quatro anos, conseguiu uma vaga para atuar no regional da Rádio Difusora local. Lá, seu padrinho de crisma, Galba Bittencourt, sugeriu que voltasse ao Recife para tocar na Rádio Clube. Era o ideal de Jacaré participar de um conjunto em uma grande rádio da capital e ele resolveu arriscar. “Estava ansioso e não tinha compromisso com mulher”, conta.
TRABALHO PRÓPRIO – Foram seis anos. Primeiramente, integrando o regional de Martinho da Sanfona e, depois, o famoso do saxofonista Felinho. A experiência, logo se transformou na primeira oportunidade – por intermédio do radialista Aldemar Paiva – de Jacaré gravar seu primeiro disco, um compacto duplo pelo selo Mocambo, da gravadora Rozenblit.
O instrumentista explica que começou a compor porque “não gostava de tocar música dos outros”. Assim, faturou o primeiro lugar com uma de seus temas num concurso do programa Céu e Inferno, da Rádio Clube. “Dá um trabalho danado fazer música”, afirma. “Tenho que estar muito tranqüilo, com a cabeça tranqüila.”
O estilo de interpretação de Jacaré é, até hoje, elogiado por diversos músicos brasileiros especialistas em choro. O que sempre dificultou a sua afirmação como compositor é o fato dele não ler nem escrever música. O cavaquinista conta que sua avó, organista de igrejas, até que insistiu para que ele aprendesse. “Mas eu era menino”, tenta justificar. O talento de Jacaré, no entanto, era latente desde criança. “Meu irmão começou antes de mim, mas o pessoal só queria que eu tocasse. Aí, ele desistiu.”
Jacaré, então, criou suas próprias músicas como aprendera a executar a de virtuoses do seu instrumento, como Waldir Azevedo: por ouvido. Assim, idealizou as 13 composições que formam seu único álbum, Choro Frevado, lançado pela primeira em 1985, como segundo volume do Projeto Nelson Ferreira, da Fundação de Cultura da Cidade do Recife, com apoio da Funarte. A produção artística e vários arranjos são assinados pelo violonista Maurício Carrilho.
Depois que deixou de ser músico nas rádios, Jacaré ainda integrou conjuntos de bom nível que se apresentavam em hotéis nos bairros da Boa Vista (São Domingos) e Boa Viagem (Casa Grande & Senzala). “Era com carteira assinada”, lembra. “Eu ganhava mais do que na rádio.” A experiência no setor hoteleiro, no entanto, não chegou a uma década.
Após esse período, o músico começou a amargar a falta de espaço para atuar. Os bares, último reduto dos chorões, já não abre tanto espaço para esse ritmo secular. As gravadoras, muito menos. “Está tão horrível, que eu saio todo dia atrás da música. Eu, um (intérprete de) violão e um (de) pandeiro. Quando eles não vêm, eu vou só”, diz, parafraseando um samba sem querer.
Do seu único álbum, reeditado em CD, Jacaré afirma que recebeu 100 cópias para divulgação e apenas R$ 34 relativo a direitos autorais. Se já é difícil para o músico brasileiro que tem suas músicas devidamente editadas receber seus royalties, imagine para o cavaquinista pernambucano, que nunca teve suas músicas editadas, não tem conta no banco e cujo endereço é informação para poucos.
Um pouco amargurado, Jacaré vive hoje modestamente de aluguel numa pequena casa conjugada no bairro de Salgadinho (Olinda). Ele a atual esposa, Maria José, que canta em corais. Para achá-lo, somente por intermédio de amigos como o violonista Henrique Annes que, quando recebe convites para tocar em outras cidades – Rio de Janeiro, São Paulo –, tenta levar o cavaquinista.
Mesmo sem muita esperança, na última vez que esteve no Rio de Janeiro – em janeiro deste ano, durante um festival que homenageou os 100 anos do choro – gravou quatro novas composições no estúdio da gravadora Acari, de Maurício Carrilho e Luciana Rabello.
O instrumentista garante que tem mais composições e espera contar com apoio de algum órgão cultural do governo para realizar o que seria seu segundo álbum. Ele conta que, quando viaja, sente-se mais inspirado a compor. “ A gente se esquece dos problemas”, explica. Na mesma viagem ao Rio, no início do ano, fez o choroTricolor, uma homenagem ao clube Santa Cruz.
Contatado por telefone, o músico e produtor Maurício Carrilho confirmou que está com as quatro faixas gravadas por Jacaré arquivadas e que, assim que o músico pernambucano tiver as outras músicas prontas, pode avisá-lo. “A gente manda as passagens para ele vir gravar”, garantiu.
Até lá, quem quiser ouvir os choros de Jacaré, além do disco, pode conferi-lo, ao vivo, em bares do Recife Antigo, como o História e o Scotch.
Obs.: Jacaré faleceu em 2005
galho seco
saudade de limoeiro
goianinha
jacaré de saiote
silvana
vai e vem
jacaré voador
jacarezinho
chorinho caiçara
pro herminio
sem rancor
jaciara
saudoso cavaquinho