Olá torcedores cultos e ocultos! Hoje é sexta feira, dia de jogo do Brasil na Copa do Mundo e também dia do disco/artista independente aqui no Toque Musical. Ao contrário dos outros dias de jogos da nossa Seleção, eu hoje não farei nenhuma postagem relacionado ao tema futebol ou Copa do Mundo. Deixarei para fazer uma postagem especial se o Brasil se sagrar o campeão, combinado?
Escolhi este disco por diversas razões, mas principalmente porque daqui a pouco começa o jogo e eu acredito que depois não terei tempo nem cabeça para fazê-lo. Daí, optei por um daqueles de gaveta, sempre prontos para as eventualidades. Eu até pensei que já houvesse postado este disco anteriormente. Felizmente vai ser ele que vai salvar o dia. Para não prolongar e também porque este trabalho merece mais atenção, decidi incluir logo a baixo o sempre providencial texto de Aramis Millarch. Esse é o cara! Leiam…
Meu irmão, o sucedido
Em Lages do Caldeirão
é o caso de muito ensino
Por isso é que me apresento
Fazendo esta relação
Curiosos os caminhos artísticos de Sérgio Ricardo. Paulista de Marília (18/06/1932), filho de um libanês que tocava alaúde, se identificaria extraordinariamente com o Nordeste ao ponto de criar a mais baiana das trilhas sonoras – o clássico escore de “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1963). Subindo ainda mais, no cinematográfico espaço da Fazenda Nova, no agreste pernambucano (aonde anualmente acontece a magnífica representação da Paixão de Cristo), Sérgio ali rodaria um filme-cordel (“A Noite do Espantalho”, 1974), obra fascinante, imerecidamente pouco reconhecida na época.
Pianista de boate nos anos 50, sem curtir etilicamente as reuniões da turma da Bossa Nova, faria dois elepês fundamentais do movimento (“Não Gosto Mais de Mim”, 1960; “Depois do Amor”, 1961); para, em seguida, passar a uma fase extremamente social.
Cineasta, compositor, cantor, violonista, pianista, poeta, argumentista, o múltiplo Sérgio Ricardo se afastaria do consumismo industrial-artístico para viver alguns anos num barraco duma das favelas do Rio – mas sem deixar de possuir sua confortável casa na Urca. Sem poder realizar os projetos cinematográficos de longa-metragem desejados, voltou-se, entretanto, para excelentes curtas-metragens e filmes publicitários.
Este múltiplo e sempre genial artista mostra que, aos 53 anos, ainda a aparência jovem de 30 anos passados, continua em vigor de criação. E apresenta uma obra maravilhosa, desenvolvida nada menos do que em parceria com Carlos Drumond de Andrade.
No chão de terra, essa terra
Que a todos nós vai comer,
chorava uma criancinha
acabada de nascer,
e João, de peito desnudo,
acarinhava esse ser
Da leitura atenta de uma experiência que o poeta maior Carlos Drumond de Andrade fez de fato acontecido no Nordeste há alguns anos – “Estória de João-Joana” – Sérgio Ricardo imaginou um grande balé brasileiro. Assim como havia feito há anos, ao musicar a obra-prima de seu amigo Ziraldo, “Flicts” (1), Sérgio colocou sua sensibilidade musical no cordel de Drummond, que fala de João que era Joana – um caso de mulher criada como homem, como outro contador de estórias, o mineiro Guimarães Rosa já havia colocado no personagem de sua obra mais famosa (“Grandes Sertões: Veredas”, 1956).
Nem menino nem menina
era João quando nasceu
A mãe, sem saber ao certo,
o nome de João lhe deu,
dizendo: Vai vestir calça
e não saia que nem eu.
Aos poema-cordel de Drummond, Sérgio acrescentou a música. Pediu ao maior dos arranjadores brasileiros, Radamés Gnattali para fazer a orquestração. Entusiasmado, levou o projeto do balé “Estórias de João-Joana” para uns amigos de muitos embates ideológicos – artísticos, Gianfrancesco Guarnieri, com quem trabalhou em “Ponto de Partida” e que hoje é o secretário da Cultura de São Paulo. Guarnieri gostou do projeto e disse: “Toque em frente”. Sérgio fez: convocou Alexandre Gnattali, irmão de Radamés, para a regência, arregimentou quase 30 dos melhores músicos do Rio e gravou uma belíssima trilha – com ele ao violão, piano e voz – mais ainda, fazendo os arranjos.
Trabalho pronto, a decepção: com mil e uma desculpas (esfarrapadas), Guarnieri tentou tirar o corpo fora. Não havia verba, não tinha condiçòes de bancar o espetáculo. Resultado: Sérgio amargou pesado prejuízo.
Honrando o sangue de libanês de coragem, homem que não leva desaforo para casa – (remember sua máscula atitude em outubro de 1967, quando quebrou o violão no palco da TV-Record, furioso porque o público vaiou “Beto Bom de Bola” no II Festival de MPB), Sérgio não se deu por vencido. Procurou outras fórmulas de terminar o trabalho e, finalmente, “Estória de João-Joana” estreou no Teatro João Caetano, na noite de 2 de maio último, com o grupo Nós da Dança.
Entretanto, um espetáculo desta beleza não poderia ficar apenas no teatro, em poucas apresentações. Seria injusto para com milhares de pessoas que tanto admiram ao multi-talento de Sérgio Ricardo.
Homem é grão de poeira
na estrada sem horizonte;
mulher nem chega a ser isso
e tem de baixar a frente
ante as ruindades da vida,
da altura maior que um monte
“Estória de João-Joana” não poderia ficar sem o disco. E, felizmente, ele aconteceu. De forma independente, numa produção de incrível bom gosto e, seguramente, um álbum para merecer o troféu Chiquinha Gonzaga, o Grammy dos alternativos. Como todo disco independente não é encontrado nas lojas e os interessados devem pedir diretamente a Sérgio: Rua São Salvador, 41/ cob. 01 – Laranjeiras, CEP 22231 – Rio de Janeiro – Fone: 265-6279).
Difícil dizer o que é mais belo neste disco: se o cordel de Drummond, se a música e a voz de Sérgio ou se a orquestração de Radamés Gnattali. Longos momentos instrumentoia intercalando a voz forte e nordestina de [Sérgio], que conhecemos desde o lirismo de “O Nosso Olhar” aos gritos de guerra de “Te entrega corrisco/eu não me entrego não/Eu não sou passarinho/para viver lá na prisão”.
Saibam quantos deste caso
houveram ciência, que a vida
não anda, em favor e graça,
Igualmente repartida,
e que a dor ensombra a falta
de amor de paz e comida
“Estória de João-Joana” é um canto-de-cordel, falando das coisas do povo. Mais do que um disco, é um momento maior de brasilidade, numa embalagem de extremo bom gosto, com ilustrações tão nordestinas de Ciro que fazem do encarte/capa uma obra de arte visual.
A voz de Sérgio Ricardo é única e marcante, de uma força extrema. Drummond, neste poema-cordel, mostra uma face diferente – mas igualmente extraordinária. E arregimentação de tantos bons músicos numa sonorização colorida, faz com que tenhamos um daqueles exemplos de produção artística fora de série, destinados a se tornarem raridades tão logo esgote a edição.
Meu amigo, meu irmão,
eu nada te peço a ti
senão me ouvir com paciência
de Minas ao Piauí;
tendo contado meu conto,
adeus me despeço aqui.
*Artigo de Aramis Millarch originalmente publicado em 18 de agosto de 1985 no Jornal Estado do Paraná